A noite da resolução
Hoje é noite de resolução.
Na minha curta vida experimentei de tudo nesta noite. Passá-la em recato, a sós ou a dois, em alvoroço de eventos privados de poucos mas bons, rodeado de familiares e amigos, no meio de desconhecidos, na rua, sóbrio ou alcoolizado, de cabeça na lua como na última destas noites em que acabei com a cabeça na terra.
Foi um baque seguido de CRACK, gritos ?e risos? polifónicos de bebedeiras a destilar baboseiras. Depois luz e som. Lembro-me de olhar para a lâmpada no topo da ambulância, perder-me embalado pelo duo azul estroboscópico secundado pela sirene estridente, pensando que aquela cúpula translúcida seria a prisão de uma bela fada que fluorescia enquanto gritava por socorro.
Pudera eu mexer uma palha e teria lutado com todas as minha forças para libertar aquela magia aprisionada. Infelizmente nem uma palha sou hoje capaz de mexer. Nessa noite disse adeus à integridade da minha quinta vértebra. A subtracção de um dos elos mais fracos do corpo humano retirou-me toda a força física e a mando da ciência passei a ser catalogado de tetraplégico. (isto também com alguma certeza matemática já que 5 -1 = 4!)
Há um ano, nessa noite, a minha vida mudou. Hoje apenas consigo mexer olhos e maxilar. Dependo de outros, tenho o corpo definhado num colchão e a mente confinada às rotinas, dramas e TVs hospitalares. Dizem-me para acreditar no avanço da ciência, sendo tão novo existe grande probabilidade de um dia vir a recuperar mobilidade. Só não me dão solução para o até lá. Para gerir o querer e não poder, para libertar aqueles que teimosamente me visitam. Ouço-os respirando fundo antes de entrarem altivos para me animarem com conversas de diversão, ouço-os a desabar após saírem. Peço-lhes sempre para não virem tantas vezes. Vivam as suas vidas sem este fardo que é meu e só meu. Eles fingem que não me escutam e que retiram prazer destes momentos. Assim como eu.
E eis que hoje chega mais uma daquelas noites. Eu, como todos deveríamos fazer, procuro realinhar-me. Mudar, melhorar, evoluir, seguir em frente, evitando a paralisia do ser e do viver. Posso-vos confessar que cheguei à minha resolução. No passado tentei matar-me. Tentativa falhada. Simplesmente deixei de respirar. Exerci a réstia de comando que tenho sobre o meu corpo para deixar de respirar. Descobri que é impossível. Primeiro deparei-me com um ponto em que, ainda consciente, o corpo domina a mente, força a abertura máxima da boca e fossas nasais, tragando metros cúbicos de ar de uma vez só. Depois consegui domar esse instinto de sobrevivência, descobrindo que o corpo reage apagando a mente, num desmaio involuntário, durante o qual se repete o processo de inspiração compulsiva.
Hoje tenho tudo preparado. Quando me servirem o copo de água a sorver, vou retê-la na boca, de forma não perceptível aos meus cuidadores. De seguida acumularei cuspo, enchendo a minha cavidade bocal com o máximo volume de líquido, imagino-me um daqueles hamsters bochechudos, ridículos de lambões que são, então susterei a respiração e canalizarei parte desse líquido para as fossas nasais. Se tudo correr bem conseguirei levar o meu corpo ao limite da falta de oxigenização, até que quando, em desespero, ele assumir o controlo, ávido por oxigénio, receberá ao invés uma dose fatal de água e saliva que decerto o/me afogarão. Como é típico desta noite dependo apenas de umas boas entradas.
Pergunto-me se ouvirão falar da minha escolha num jornal sensacionalista ou se não passarei de um drama pessoal para os mais chegados. Ou pior, se acham que foi um acidente ou um homicídio, talvez devesse tê-lo discutido com alguém antes para evitar interpretações erradas.
Seja como for, aqueles que leram este meu último pensar, desejo-vos uma boa noite e que a vossa resolução vos proporcione uma vida um pouco mais desafogada.
Escrito de Fresco porquê?
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Olá... estou-te a ver! Podes falar mal ou falar bem mas com juizinho sff! Beijinho e/ou Abraço