Break a Leg

Estaciono, saio do carro, pego nos meus pertences, nas laranjas que colhi, no bolo rei que trouxe por cortesia fecho a porta e tranco o carro. Aqui vou eu. Atravesso a estrada a caminho de mais uma visita de neto. Deparo-me com o teclado numérico. Código? Caderninho! Merda... está sempre no outro... Arrisco 1942 Nada. 1957 Nada. Bolas! Sei que é o sacana de um ano mil novecentos e troca o passo mas nunca acerto... que desnaturado... Dois putos aprochegam-se. Vocês vão entrar? Evasivos na resposta, provavelmente aplicando a regra de não falar com estranhos incutida pelos pais, atrapalham-se e bloqueiam. Vá marquem lá o código que eu entro com vocês. Digo-o numa voz amistosa. Eles marcam o código, tótós se fosse um daquele tipo de estranhos estavam tramados, a porta abre-se, entro, subo o lance de escadas e toco à campaínha.

Preparo-me. Mais de 90 anos, praticamente cego, mouco, fractura de fémur recuperada em três meses durante os quais esteve alojado, junto com a minha avó, num lar de idosos, um monologante, contador das mesmas histórias com o mesmo pormenor todas as vezes. Basta ouvir, sorrir e pelo meio falar com a minha avó.

Faz o mesmo de sempre. Abre a porta sem perguntar quem é. Eu silêncio. Estamos a dois palmos. Ele especado a fingir que olha para mim. Eu especado a olhar para ele. Quem está aí!? diz-me com tom autoritário. Isso devia dizer você antes de abrir a porta! Já estava a ser roubado para não se armar em forte! preocupa-me esta forma confiante como abre a porta sem saber quem é. Ôôôôôôôlha quem é ele! Olha quem é ele! num ar de surpresa agradada que rapidamente muda de registo para um Agora à hora de comer é que vens? porque apareço sempre à hora que sei ainda não ter começado a sesta e levo-lhes a sobremesa.

Entro, imagino que para ele sou uma mancha negra com um travessão cinza claro no final do rosto, cumprimento a minha avó, largo as laranjas e o bolo rei. Levo sermão por levar fruta porque já não tem espaço para a guardar, está cheio de pêras e pêros que lhe trouxeram, ai Jesus que lhe dou cabo da organização! Por fim decide-se a guardá-las na gaveta do frigorífico, que está vazia... Eu atiro-me ao bolo. Um bolo!? Sabes bem que eu não posso comê-lo! Não come você como eu e a avó, não se preocupe! Saco de uma faca, corto uma fatia como deve de ser para mim, levo-a à boca e caiem-me crotões de açucar para o chão. Olha para isso! O que tu estás a fazer! Essas migalhas, pá! Imediatamente volto à infância, ao tempo em que ele me perseguia com um pires atrás das minhas carcaças para não deixar cair migalhas para o chão. Sempre foi um fanático do asseio. Como terá ele visto aquilo? Açucar como será no seu mundo? Branco-luz? Um raio de luz a rasgar a minha negridão de alto a baixo?

De seguida pede-me uma fatia, já que está ali lá tem de ser, mas uma pequena, uma pequena, para a minha avó anui a que seja uma grossa. E volta à sua rotina, às suas queixas, aos seus despiques com a minha avó. Que chegam a ser engraçados de tão non-sense, picuinhas, rabujentos, juro que gravados dariam uma série de humor de sucesso.

Vou para a sala com a minha avó enquanto o meu avô arruma a cozinha às apalpadelas. Ao jeito, não o mais correcto será dizer ao alcance, dele. São os únicos momentos dela nestas visitas, até que ele chega e imagino que pronto para uma das suas histórias de vida. No entanto surpreende-me. Fala do lar, dos seus utentes/inquilinos, da equipa que deles cuidava, da direcção, do que aconteceu nestes últimos três meses. Descreve ao pormenor a dinâmica social dos que ali se encontravam, insurge-se contra os modos como tratavam alguns deles que, segundo ele, sofriam de 'doenças do cérebro', relata chocado a forma como um deles, de 99 anos, ali esteve moribundo até partir de ambulância para falecer chegado ao hospital. Sim, continua a fazê-lo no seu jeito monólogo, impeditivo da complementaridade da versão da minha avó, surdo às minhas questões/observações, mas porra! Está a falar com tal paixão e eloquência que me revejo nele. Naquela capacidade de observação detalhada, naquele sentido de justiceiro, metendo o bedelho em assuntos para o qual não é tido nem achado, naquele sangue na guelra, naquele chispar de olhos indignados! E a forma como fala, referindo-se às possantes empregadas como mulheres que vieram da Guiné, que trabalhavam no arado, a puxar bois, com uma força tremenda, que praticamente o jogavam pelos ares da cadeira para a banheira e o lavavam em duas voltas, POÇA! E eu pensando As metáforas, os adjectivos, as hipérboles, perfeito, perfeito! Os genes estão cá, os genes estão cá!

Saí de lá com a certeza de que aquela queda lhe quebrou bastante mais do que a perna. Quebrou-lhe a rotina. Forçou-o a adaptar-se, a sair da sua estéril redoma protectora, desassossegou-o. No meu egoísmo dou por mim a pensar, se é este o resultado final, talvez devesse partir algo mais vezes ao ano pois, de uma estranha forma, acabou por funcionar como uma infusão de vida.




Stand-up @ Estabelecimento Prisional

Algures em 2014 surgiu-me a vontade de provocar o riso em locais onde ele habitualmente não acontece no dia-a-dia. Os locais de eleição seriam lares de idosos e/ou prisões.

Por acaso do destino fui forçado a ter contacto mais directo com a realidade dos lares e percebi que são um ambiente muito específico, com utentes que apresentam notórias debilidades cognitivas, aos quais será mais adequado um tipo de entrega de humor que passe por um formato de "contador de histórias", com inclusão das vivências dos próprios já que grande parte da sua alegria consiste no partilhar as suas memórias e ter quem as escute e por elas se interesse.

Por exclusão de partes sobraram as prisões. Disparei e-mails, fui contactado confirmando-se que efectivamente não existem meios e a animação cultural está dependente de voluntariado. Que é feito por desconhecidos e a espaços também por nomes conhecidos sem o publicitarem, por razões óbvias. Nunca tinham no entanto tido um formato de stand-up e acharam por bem dar-me 20 minutos da sua festa de Natal.

Naturalmente pedi uma visita para conhecer espaço, obter enquadramento sobre a plateia e ter orientações sobre conteúdos possíveis. Iriam ser 200 e tal presos da ala mais 'sensível'. Com uma concentração assinalável de presos detidos por crimes sexuais, alguns dos quais duros e deveras perturbadores. Eu próprio pedi a revisão dos textos/piadas que pensava fazer para o ajustar se assim fosse necessário, evitando provocar um estado de sítio na sala.

Sou franco, quando pensei em reclusos pensei-o genericamente, homens presos anos, privados da sua liberdade, em tensão constante e ambiente pesado. Poderiam existir alguns casos mais escabrosos mas nunca me ocorreu uma concentração no mesmo local dos condenados pelo mesmo tipo de crime em todo o país. E fiquei a pensar, fará isto sentido? Homens que fizeram aquilo que fizeram terão direito a estes 'mimos', a esta consideração? Justificam o meu esforço e tempo que poderia ser aplicado em qualquer outra acção?

E quando me meto a pensar a fundo está tudo estragado porque extirpo o lado emocional, o humor que alguns chamam de parvoíce inata, e fico uma besta racional.

Assim de repente a comparação imediata é o porquê ajudar/fazer rir reclusos e não crianças ou idosos? No final chego à conclusão que em todos os casos o argumento decisivo é o mesmo. Uma fé ou uma aposta arriscada na participação de um movimento benigno de transformação, de causa/efeito que por algum acaso do destino toque alguns ao ponto de provocar clicks impulsionadores de mudança.

O nível de risco de desperdício do investimento de uma acção de apoio fortuita é o mesmo para uma criança, um idoso, um recluso.

Uma criança não tem praticamente passado, tem um futuro que será definido pelo seu dia-a-dia, pelo seu ambiente e rede social e familiar. O que conhecemos da criança que ajudamos? Pouco. O que sabemos das crianças que ajudámos no passado? Que adolescentes ou adultos se tornaram? Nada. No entanto ao ajudar crianças cremos que de alguma forma estamos a contribuir para um seu futuro melhor.

Um idoso por outro lado tem um enorme passado que no entanto na maioria das vezes é pouco ou nada conhecido. Um idoso é um ser físico, marcado pelo tempo, crendo nós que seja lá qual tenha sido o seu passado o peso do tempo se encarregou de aplicar a sua justiça. O aproximar do fim de vida é um atenuante enorme. A um idoso procura proporcionar-se um bom presente mesmo que fazendo uso de um perdão por omissão.

Um recluso está no meio, já foi criança, talvez até alvo de apoios nessa altura, tem um passado onde terá praticado actos ílicitos e/ou deploráveis, é agora um homem com meio futuro à sua frente até se tornar um idoso. O que está aqui em jogo é esse tempo intermédio, onde voltará a ser inserido na sociedade. A aposta a fazer é acreditar que é possível que o homem que errou não seja o homem que sai da prisão. E construir momentos/fundações que sirvam de pedras no caminho a essa transformação.



Imbuído desse espírito iniciei a preparação. 3 Rounds de revisão e mais de metade do texto a ter de ser substituído. Piadas fortes a serem eliminadas meramente por usarem palavras que podiam ser conotadas com sexualidade de forma demasiado ordinária. Ao ponto de após a 2ª revisão exasperar explicando que teriam de tentar retirar alguma carga à leitura crua do texto porque a minha persona ia suavizar a entrega sendo a persona o elemento chave do humor. Suplicando para me deixarem ter um determinado conjunto de piadas levemente sexuais/machistas porque eram as únicas referências comuns da plateia. Sim, são reclusos, mas para mim, por profissionalismo, são uma plateia que tenho de fazer rir, que tenho de agarrar pelo que apesar do desconforto tenho de ter algumas armas, caso contrário faço um texto de piadas eruditas que vão passar completamente ao lado. Estiquei-me e chego a dizer que não percebo como podem também fazer uma blindagem tão grande e tornar tão tabu algo que na sociedade está omnipresente. Se têm de ser reabilitados teriam de aprender a lidar com esse tipo de estímulos e não ser privados de toda e qualquer referência a sexo, sob risco de explosão descontrolada assim que voltem à sociedade.

Finalmente tenho os 20 minutos alinhados 48h antes da actuação. Na noite anterior invisto com 3x ensaios totais que repito no dia ao conduzir a caminho do trabalho e mesmo em cima da hora ao conduzir do trabalho para o estabelecimento prisional. Chego 1/2 hora antes de ir a palco. Uma curiosa, e corajosa, amiga recente esperava-me, avançamos, já pensavam que eu não ia aparecer, passamos os portões, entramos no salão de festas, composto com os 200 e picos reclusos, actuava uma cantora de música ligeira. Começo a observar sala, condições de palco, som e perguntam-me se estou nervoso. Sim, estou nervoso, não pelo espaço ou reclusos, faz parte ter cagufa de que nada funcione. Vejo que pensam ser pelos reclusos, não faz mal. Dizem-me que vão actuar uns fadistas antes de mim. Tudo bem, mais tempo para sentir a sala.

Quando se aproxima o final do momento de fados peço para falar com o MC, um senhor talvez septuagenário com ar de marialva bem-disposto e bom vivant. Apresentam-me como o comediante que vai fazer 20 minutos de stand-up. Imediatamente responde "20!? Não! Stand-up no máximo 10 minutos!" Quem comigo combinou o evento tenta negociar ao que ele diz algo parecido a "Eu é que sei, eu é que estou a gerir o evento. Olhe que de stand-up percebo eu que já o fiz muita vez, com o Nilton e  ..." (disse mais uns nomes que esqueci por já estar vidrado)

Por dentro fervia, dizerem-nos a 5 mnts de entrar que temos de cortar o texto para metade é o Armageddon de um comediante, sobretudo para mim que tenho o fetiche das transições para tornar tudo uma conversa continuada e encadeada. Tive de me controlar e repetir para mim mesmo: "O MC é rei, o MC é rei" ele é que gere o show, temos de respeitar e deixar as tricas para bastidores. Mesmo assim intervi e pedi-lhe para fazer uns 15 minutos e terminar com 3 de um poema. Não sei como estava o meu olhar e postura, sei que ele se vira para mim e me diz para ter calma que estamos ali a falar a bem como dois 'artistas', eu que lhe desse o meu contacto que ele depois arranjava-me uns trabalhos. Passei-me um bocado e disse-lhe algo muito parecido a "Não se preocupe que ainda não faço disto ganha pão, faço-o por gosto. Fazemos assim se você achar que tenho qualidade faz-me o convite no final porque estar assim a dar-me um cheque em branco não faz nenhum sentido, não acha?" Já não sei se jocoso se sentido diz-me "Já vi que temos aqui artista!" Eu já só queria serenar 2 minutos antes de subir a palco e pedi-lhe apenas para me chamar com 2x frases específicas sff, para eu pegar a partir daí para as primeiras piadas.

Descompressão. Reforçar cortes de última hora e pontes para tapar buracos. E eis que chega o meu momento. E o que me faz o MC profissional? Desce do palco, vai para junto da primeira fila (afastada 2m ou 3m) e chama-me simplesmente pelo nome, chegado lá pergunta-me em ON se quero fazer ali em baixo ou no palco (onde estiveram todos os artistas anteriores)... e lá vamos ambos lado a lado a subir as escadas para me fazer a passagem de micro.

A partir daqui foi pé no acelerador da intensidade para tirar o ambiente fado da tola, na primeira piada o micro faz uma ressonância brutal (que o bom técnico de som anula e calibra em 1 ou 2 s) que integro de imediato na piada repetindo-a uma 2x e perguntando porque ele não fez a ressonância novamente !? Ah... foi sem querer!? Pensava que ia ter efeitos sonoros à maneira! E com esta parvoíce 1/3 da sala fica ganha, 2x bits fortes 3/4 da sala ganha e eis que chego ao tease com piadas sobre Benfica. Ui, falar mal do SLB!? Um grupo de uns 8 começa a mandar bocas e o caraças. Estão identificados os hecklers da sala. Claro que neste ambiente não posso 'atacar' pelo que montei piadas de defesa em que ao me defender das acusações mostrava na verdade ser mais benfiquista do que eles. Hecklers anulados. Até que... digo simplesmente "Nunca vi um preto com uma tatuagem como deve de ser!" apontando para o meu tom de pele (estando propositadamente de t-shirt). Imediatamente 3x pretos/negros/pessoas de cor, escolham, protestam com o meu suposto racismo e saiem da sala sem ouvir mais nada. Vejo comoção espeto imediatamente com a piada de ridicularização dos skins para equilibrar a balança. Paz novamente. Ufa. Sigo com uns altos e baixos acabando em grande como mandam as regras.

Antes de terminar o segmento de stand-up o MC saira da sala para ir comer qualquer coisa, ao voltar estou a terminar o poema marcante para o contexto e a frase semente de pensamento de mudança que queria deixar. Completamente desenquadrado do que estava a fazer, sem ouvir sequer, vejo-o a dirigir-se ao técnico de som e pedir para me desligar o micro. Fuck, tenho a sala completamente focada, a sentir aquele coelho tirado da cartola, estou prestes a dar punch poética e tenho de olhar para ele, fazer sinal de 1 minuto, preocupar-me com um corte de micro. Felizmente o técnico de som fez ouvido de mercador e fiz a entrega final apesar de com um pouco menos de força. A sala aplaude mas eu quero sair dali porque mais uma vez sinto-me vidrado.

Fiquei até ao final para ouvir dos psicólogos se acharam que a entrega foi adequada, se haveria coisas a apontar e felizmente disseram ter sido bom. Reconheceram que realmente as piadas entregues daquela forma são muito mais leves e gostaram bastante do poema que nos deixa a pensar. Descompressão total, fiz o que me competia, agradei a gregos e troianos e o mais importante é ter feito uma ponte entre o estabelecimento prisional, o formato stand-up e de poesia de autor declamada de forma intensa.

A nível pessoal para além de uma experiência a nunca mais esquecer percebo cada vez mais que atingi naturalmente um patamar de presença e postura em palco que me permitem lidar com imprevistos, com pressão, e com reacção da plateia de forma quase imediata e natural. Em duas actuações distintas no espaço de uma semana vieram ter comigo perguntando se eu tinha improvisado uma grande parte porque tinham tido essa noção. Estas perguntas inocentes são a confirmação da boa entrega e preparação prévia pois na verdade houve muito pouco espaço para o improviso.

PS - um mega post muito pessoal que pensei vir a ser muito mais curto, inciado como um corriqueiro de Facebook. Foi-se avolumando ao ponto de o migrar para aqui e criar uma nova categoria "Diário de Bordo" onde colocarei registos históricos de coisas que mais tarde vou querer recordar com mais detalhe.

Escrito de Fresco porquê?

Há quem me tome por incontinente verbal mas a verdade é que a minha língua não tem débito suficiente para o turbilhão de pensamentos que me assolam a mente a todo o momento. Alguns engraçados, outros desgraçados, mas vários merecedores desta lapidação digital para a posteridade e, quem sabe, para a eternidade. Os escritos aqui presentes surgiram do nada e significam aquilo que quiseres. Não os escrevi para mim mas sim para ti. Enjoy

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