Corre por mim mas fá-lo comigo!
Como nos outros dias ligam-nos a TV bem cedo, por mim nunca a apagavam, é boa para abafar os nossos "huuuunnnnnn", "sssssssssssss", "aaaaaaaah", incontroláveis e expiatórios da pressão interna causada por estes corpos estranhos que gestamos involutariamente.
Pelos vistos hoje há uma corrida contra o cancro em que apelam aos atletas para correrem por nós, os doentes oncológicos, porque nós não podemos. Gozam? Correrem por mim!? Julgam que me alegro porque correm por mim uma manada de atletas saudáveis? Mesmo parado a cada segundo eu corro contra a morte, numa luta mental contra a necessidade de parar, entregar-me e finalmente descansar. Uma ultra-maratona inevitável em que tento evitar, a todo o meu custo, chegar ao ponto em que decida mudar de direcção e correr contra a vida.
Não preciso que corram, que se entretenham, que vivam, por mim. Dava-me jeito, isso sim, que me arrastassem para essa corrida! Aproveitar como deve de ser as rodas desta cama hospitaleira, atá-la a correias atreladas a atletas vigorosos. Ah caraças! Como ia adorar sentir novamente o vento na fuça! Ficar-lhes-ia eternamente grato por esse carregamento, por esse momento de carroceiro arruaçeiro. Caso contrário cá continuo, imóvel, neste aborrecido sofrimento.
Querem correr? Corram. Apenas não o façam por mim. Não vos pedi nem o quero. Também eu corri no meu tempo, sem motivo aparente, sem causa nem objectivo. Tivesse eu passado nessa altura pelos hoje meus colegas de quarto, acamados, conscientemente inanimados, agonizando na luta contra o cancro, e lhes gritasse em euforia do meio da rua que estava a correr por eles, porra, eram bem capaz de me mandar para o CA$#%#0! he he he
Ao remoer pensamentos e memórias, praticamente a única coisa que me é físicamente possível, frequentemente matuto na última vez que comprei um par de ténis. Entrei na loja e imediatamente fui abordado por um jovem que calçava uns ténis desportivos imaculados, topo de gama da melhor marca.
- "Bom dia, posso ajudá-lo?"
- "Desde que não atrapalhe toda a ajuda é bem-vinda! Procuro uns ténis de corrida. Baratos."
- "Baratos? Olhe que o barato sai caro. Tendo em conta a sua idade vale a pena investir um pouco mais para ter um pisar mais confortável, aumentar rendimento, evitar lesões, ..."
- "Sim, barato! Quero sentir que o que tenho calçado não vale nada para o sujeitar a provações e desgastar sem dó nem piedade. Tenho para mim que uns ténis ricos e cuidados não podem ser sujeitos às agruras de trilhos mal tratados. Esses estão formatados para belas estradas ou tartãs cómodos e especializados, pisos que não fazem parte do meu caminho."
- "Pelo menos considere estes com a última tecnologia relativa a micro-perfuração permitindo um melhor respirar e controlo da temperatura..."
- "Oh amigo, primeiro eu respiro pelos pulmões, segundo, na minha idade sou bombardeado com informação preventiva sobre o perigo dos ossos corroídos com micro-fissuras, dos músculos destruídos por micro-rupturas e agora quer convencer-me que ténis micro-perfurados são melhores!? Macro, quero ténis macro! Com preço Makro de preferência! Como aqueles ali!? São tão baratos porquê?"
- "Não lhe aconselho esses... são outlet... vêm com imperfeições de fábrica... são mesmo solução de recurso para quem não pode investir melhor."
- "Ténis imperfeitos! Provavelmente produzidos por crianças ainda crianças qb e não crianças já transformadas em autómatos da perfeição. Ténis imperfeitos que encaixam na imperfeição dos trilhos que hei-de com eles palmilhar! São estes!"
- "Faça-se a vontade do freguês... espero que não volte aqui a acusar-me de não me ter esforçado mais para lhe vender um produto melhor... e que pela sua saúde só esteja a pensar andar ou correr pequenos trajectos!"
- "Meu jovem, já não perco tempo em pequenas corridas, espero que quando tenha a minha idade saiba que só são verdadeiramente benéficas para a saúde as corridas de longo curso que não têm retorno."
E saí deixando um vendedor desapontado.
Esses ténis safaram-se durante mais de 10 anos, até hoje. Aposto que esperam por mim, pelas minhas melhoras, abandonados, ainda com a gravilha cravada na sola, maquilhados com as poeiras de todos os locais palmilhados. Como seria bom tê-los agora calçados, poder vacilar, deixar-me levar, porque esses ténis, meus amigos, esses ténis já estão ensinados.
Esses sim, correm por mim e fazem-no sempre comigo.
domingo, junho 08, 2014 | Etiquetas: História Curta | 0 Comments
Escrito de Fresco porquê?
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