Danças?
Podíamos ter ido a um bar dançante, onde a dança se traduz ao abanar da cabeça e a um ou outro esticar de braços e pernas quando o afrouxar do aperto da multidão assim o permita, mas não, viemos parar a um salão de dança...
Aqui tudo muda de figura. Há uma banda a tocar ao vivo, a trocar olhares, a incitar ao auditório que se liberte das cadeiras e preencha a libertadora pista de dança que separa os músicos da plateia.
É mais ou menos neste ponto que sou inundado por suores frios. Observo uma série de casais a assistir, elas progressivamente a serem contaminadas pelo bichinho da dança, primeiro com o pézinho a dar a dar, depois com os ombros a bascular e finalmente com os olhinhos a suplicar, direccionados para o seu par em pedido carente de "Dança comigo..."
Em redor, aqui e ali, outros aguardam por quem se atreva a exibir na arena os seus passos de dança, àvidos por criticar e ridicularizar quem a isso se presta.
Ainda estou a tentar perceber o cenário, onde me encaixo, quando sou surpreendido por ela.
- "Anda! Vamos dançar!"
Admiro-lhe a iniciativa, o saber o que quer, o não ter papas na língua, só que hoje, agora, aqui parecem-me o seu pior defeito. Cometi o erro de entrar. Agora só me resta a gestão de danos.
- "Calma! Não está ninguém na pista! Queres dar espectáculo!?"
- "Vá lá! Estás com vergonha de quê? De mim!?"
- "De ti? Nunca..." - afagando-lhe a cara como quem tenta comprar a simpatia de uma fera - "Apenas não quero ser o bobo da festa. Tu se fôr preciso alapas-te a mim, encostando a cara ao meu peito e ali fico eu, a descoberto, qual farol no meio da neblina e solidão marítima."
- "És sempre a mesma coisa. Nos poucos momentos a dois nunca queres estar comigo, fazer coisas comigo, partilhar momentos, nada!"
Este é um ponto perigoso. Estou na fronteira que define se o resto das férias serão o concretizar de um sonho ou de um pesadelo. Preciso de reagir rápido e entregar-me às mãos do destino. De preferência um que me seja favorável! Inteiro-me rapidamente dos ocupantes das restantes mesas. Muitos são casais jovens com o mesmo dilema que nós. Posso eliminá-los da equação pois só terão coragem de ir à pista quando esta se tornar uma floresta de corpos, onde mais um é só mais um e não a atracção principal. Observo também vários casais nórdicos na casa dos 50s. Assumo que ali estejam só para apreciar o pagode. A música dos anos 80 que ecoa no salão não deverá ser propriamente a sua música preferida, além de que a genica já não deva ser muita a esta hora. Sobraram uns casalinhos homossexuais onde notoriamente um deles está mortinho pela dança e o outro está desconfortável em fazer demonstração pública de afecto. Vejo o cenário bem encaminhado, decido arriscar e faço-lhe uma promessa.
- "Não tem nada a ver contigo, eu é que sou acanhado e desajeitado na dança. Fazemos assim, se estiverem cinco casais a dançar nós vamos. Pode ser?"
- "Cinco?" - olhando em redor para as dezenas de mesas na sala - "Ok, aceito. Ai de ti que não cumpras!"
Claro que aceitaria o repto, caso contrário não o teria lançado. Fiquei tranquilo e relativamente seguro de me ter safado de boa. Até ao ponto em que a música muda radicalmente. De repente, do nada, começam a tocar um famoso slow, tema do filme "Ghost" e dá-se o sururu. Assim que se soltam os primeiros acordes ouço um burburinho na sala. O mais puro gáudio, celebração do amor, recordação dos bons velhos tempos, sei lá, a P da loucura. Imediatamente saltam para a pista um, e depois outro, dos casais de meia-idade que iniciam os rodopios do costume. De uma assentada passamos do zero aos dois casais na pista. Olho para o lado e vejo-a com brilho nos olhos e sorriso a despontar.
- "Toma! Dois já lá moram! Nós somos o quinto, nós somos o quinto!"
- "Não! Nós somos o sexto!" - corrijo no imediato para evitar problemas mais tarde
Acabo de fazer o esclarecimento do regulamento e mais dois casais juntam-se à dança. Safei-me de boa. Tenho o problema adiado e vejo a minha vida a andar para trás. Nada mais me resta do que tentar influenciar a mente dos restantes casais a fim de os pregar nas cadeiras. Não devo ser bom a fazê-lo porque rapidamente um outro casal se levanta de surdina. Juro que sinto que o tempo parou e o silêncio preenche a sala em resultado da sua ousadia.
- "Uhu! Já ali está o quinto!" - interrompe ela a pausa com uma euforia desmedida
- "Calma, penso que eles se estejam a ir embora." - era tão bom...
Vagarosamente arrumam as cadeiras e avançam pela lateral. Só poderiam virar à direita para sairem do salão, ou à esquerda para se juntarem à animação central. A esperança é ténue mas ainda existe. Ou existiu por uma fracção de segundos. Em menos de cinco minutos a pista de dança passou de um completo vazio para um preenchimento parcial, com cinco casais de meia-idade a bambolearem-se como adolescentes das próximas gerações.
- "Tu pro-me-tesssss-teeeeeeee" - uma zombaria final que me vincula a um momento de zombie dançarino
- "O prometido é devido... vamos..."
Falei como se estivesse perfeitamente preparado e deixei-me arrastar pelo seu contentamento. Entrámos na pista e foi como se tivesse entrado numa outra dimensão. Eu a tentar perceber o ritmo, ela solta, ondulando em sintonia, passos para aqui, passos para acolá, passos para sei lá!
Olhando para o lado vejo um casal dançando como se estivesse a tocar o "Apita o Comboio", olho para o outro um casal interpreta uma valsa, mais à frente um homem abraça a parceira agarrando-lhe os glúteos como se disso dependesse a sua vida. Desespero. Não tenho qualquer ponto de referência para me inspirar na coordenação motora. Não sei o que faço para lhe chegar e agarrá-la mantendo a imagem de estar a dançar.
- "Agarra-te a mim e não me largues por favor! Parece que estamos em 5 pistas de dança diferentes. Imagino o espectáculo que estamos a dar a quem está a ver de fora!"
- "Ha ha ha, não andes aos saltinhos, hi hi hi, não andes tão depressa, ha ha ha"
- "Tem uma graça do caraças! Anda para aqui! Escondemo-nos aqui, atrás destes que estão aos apalpões. Olha-me para isto! É cada um por si, salve-se quem puder!"
- "Ha ha ha Isto está muito engraçado! hi hi hi Vá, dança assim sem me pisares."
E aqui estamos a saltitar no meio destes loucos. Estranhamente mais ninguém se juntou à pista. Imagino que o nosso rídiculo foi um factor de dissuasão essencial na argumentação dos restantes machos presentes para com as suas parceiras de mesa.
Durou até começarem a tocar o "New York, New York" levando ao vazar da pista. Graças a Deus. Estou ainda a recuperar o fôlego quando vejo um casal de 40s a entrar na pista e ali estarem sós nas três músicas seguintes. Como é possível que esta malta dos 40s esteja tão mais desinibida que os casais de 20s e 30s aqui presentes? Mais à vontade e sabedoria? Menos pudor e vergonha? Provavelmente só o saberei quando lá chegar.
Não muito depois solta-se novo hit musical fazendo com que o bicho da dança volte a morder calcanhares.
- "Gosto tanto desta! Vamos outra vez?"
- "Não, não me apetece. Estou cansado. Dói-me a cabeça. Porque não convidas ali um dos membros dos casalinhos gay? Estão zangados porque um quer dançar e o outro não. Assim como assim não há perigo de outros interesses."
- "Até ia..."
- "Isso vai lá que eu fico aqui a ver."
Ela foi, eu fiquei a ver.
domingo, janeiro 05, 2014 | Etiquetas: História Curta | 0 Comments
Escrito de Fresco porquê?
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