Mimos desnivelados

A mesa, posta para dois, desnivela milimetricamente em direcção à parte sempre presente. Sentada no seu lugar estratégico com uma linha de visão que atravessa a porta da sala de jantar, percorre o corredor do hall de entrada e se detém na porta da rua. Essa mística barreira que separa o caótico mundo exterior do seu sereno e controlado mundo privado.

Por agora come apenas o pão para entreter a fome. As migalhas caiem ao ritmo da areia de uma ampulheta ansionsa. Ansiosa por ele. Que saudades de um jantar a dois... Não só de um jantar mas também, por agora seria suficiente. Sim, suficiente chegava. Suficiente seria melhor que o normal.

E assim continuava só. Usando os miolos para pensar até se esfarelar a última côdea. Altura em que se levanta, percorre o caminho até à porta da rua e serve-se do olho mágico na esperança do concretizar de uma última ilusão.

Pouco depois resigna-se, volta à sala de jantar e desgasta um pouco mais o seu lado da mesa iniciando e terminando a sua requintada refeição. Após o que simplesmente se deixa ficar. Fitando o finito delimitado pela porta da rua.

Bem mais tarde, muito para além da sua hora de dormir, eis que a porta se abre, ele chegou. Vendo-a a pé não esconde a sua surpresa.

- "Ainda a pé!? Esperaste por mim!? Que querida! Comi qualquer coisa pelo caminho, desculpa. Surgiu um imprevisto e não pude avisar. Sabes como é..."

- "Sim, sei como és... e como pouco sou para ti..."

- "Não digas isso! Sabes o nível de exigência lá no trabalho."

- "É isso que preciso fazer? Exigir para te dares aqui comigo? Ao invés de esperar que o queiras fazer por ti?"

- "Sabes que precisamos do dinheiro. Se não fossem estas horas extra-ordinárias não ia conseguir pagar-te os mimos de que tanto gostas!"

- "Os mimos de que tanto gosto!?" - sorriso suspirado - "Vem comigo ver uma coisa, se faz favor."

- "A estas horas!? O quê?"

- "Não te preocupes que é rápido."

Ela lidera o caminho subindo as escadas para o piso dos quartos. Passa pelo quarto dela, passa pelo quarto dele, passa pelo quarto de hóspedes e detém-se frente ao quarto extra onde as coisas se desarrumam sozinhas. Abre a porta e revela-se um pequeno bazar repleto de jóias, perfumes, sapatos, vestidos e todo o tipo de presentes adequados ao género feminino.

- "Estão aqui todos os teus mimos. Imaculados. Por estrear. Ainda embalados."

- "Não acredito... não usaste nem um!?"

- "Reparas agora como nunca reparaste antes? Não são estes os mimos que alguma vez procurei ter. Não dou uso ao que não me tem proveito."

- "Tens noção do dinheiro investido nestes presentes? E do tempo que trabalhei para te os poder dar!?"

- "Tenho, tenho muita noção do tempo que trabalhaste para me os dares. Por isso os tenho guardados como novos. Para que os possamos vender e comprar de volta esse tempo perdido. Fazer com ele algo mais útil como por exemplo jantarmos juntos, vivermos juntos, mimares-me com o teu toque e com as tuas palavras."

- "Sabes que não funciona assim... Já criei uma imagem de marca no emprego, não posso agora de um momento para o outro deixar de corresponder às expectativas...Sei que às vezes é chato mas ao menos permite-nos ter estes mimos. Devias é aproveitar aquilo que te posso dar e não focar-te nas minhas falhas esporádicas. E agora tenho de ir dormir que amanhã tenho de levantar cedo! Continuamos a conversa amanhã ao jantar, pode ser? Beijo, boa noite." - o beijo foi apenas falado


Ele remete-se aos seus aposentos e inicia o seu sono reparador não fazendo caso do que acabara de se passar. Ela ali ficou, mimada por todos os lados, fitando o infinito, revivendo cada segundo, cada palavra, desde que a primeira migalha do primeiro jantar caiu sobre a mesa, nessa altura ainda nivelada.

Pouco depois desce as escadas com duas malas, uma em cada mão. Encara a porta da rua e pela primeira e última vez sente que está no seu lado errado. Sem hesitar abre-a, sai e fecha-a. Pára um pouco respirando outro ar.

Não resiste a uma última curiosidade, vira-se para trás e espreita pelo olho mágico. Surpreende-se por este não funcionar deste lado. Talvez seja melhor assim.

Segue caminho sendo a sua última memória a forma como ofertas, feitas ao longo de toda uma vida, apenas precisarem de um rápido piscar de olhos para se transformar numa pira imensa, com as mesmas cores e calores de uma antiga paixão intensa.


Escrito de Fresco porquê?

Há quem me tome por incontinente verbal mas a verdade é que a minha língua não tem débito suficiente para o turbilhão de pensamentos que me assolam a mente a todo o momento. Alguns engraçados, outros desgraçados, mas vários merecedores desta lapidação digital para a posteridade e, quem sabe, para a eternidade. Os escritos aqui presentes surgiram do nada e significam aquilo que quiseres. Não os escrevi para mim mas sim para ti. Enjoy

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