A TV Morreu
Olho e oiço a chuva estática na TV numa espera interminavel de que a emissão retome da interrupção. Não sei há quanto tempo aqui estou. Indeciso entre usar todas as minhas forças num esforço épico para pegar no andarilho, içar-me desta poltrona, onde estou ancorado, percorrer toda a sala, rodeando a mesa de centro, e ter a destreza para me equilibrar enquanto mexo nas duas antenas em simultâneo até achar o sinal. E tudo isto sem que me mije pelas pernas abaixo.
Prefiro esperar que passe, que a maré mude e as ondas do sinal voltem a passar no mesmo sítio de outrora. Já nada me incomoda desde que a solitude física, onde me encontro há décadas, se entranhou em mim isolando-me a mente e espírito de todos os estímulos exteriores. Vivo só, estou só, sou só. Só, só só.
Já nem me lembro se alguma vez tive família, se saí com amigos, nem sequer se fui boa ou má pessoa no passado. Lembro-me de mim já só, no meio das multidões na ruas da cidade, procurando reconhecer alguém para trocar dois dedos de conversa.
Tudo o resto é vago, uma realidade entremeada com fantasia, ou vice-versa, já nem sei bem. Só a matemática mantém o vigor da juventude, fruto da necessidade de esticar reforma risível a tentar manter-me vivo no limiar do confortavel.
Vejo notícias de velhos morrendo sós que demoram meses ou anos a ser encontrados. Não quero isso para mim e já me precavi. Vejo a TV no máximo para que um dia que me vá os meus vizinhos se deêm conta da estranheza de todas as noites o som da chuva estática não os deixar dormir. É por isso que me irritam estes falsos alarmes, estas quebras de sinal, que me podem ainda arranjar problemas de vizinhança enquanto vivo.
Acho que desta me vou levantar. O raio do sinal nunca mais se restabelece.
- "Velho, pára lá com as lamechiches. Está na hora de vires."
- "Oh diabo! Que fazes nas minhas costas? Quem és tu? Como entraste aqui?"
- "Sou um como tu. Entro onde quero quando quero. Portas e paredes são mera ilusões. Mandaram-me vir buscar-te já que nunca mais te dás conta."
- "Vir buscar-me? Como assim?"
- "Morreste. Estás morto há uns aninhos. Começa a ser normal que ninguém dê conta mas é raro o próprio morto nem se aperceber. Parece que és um desses cromos e cá estou eu para te mostrar o caminho."
- "Estou morto? Como se aqui estou?"
- "Aqui estás não, aqui jazes."
- "Morri sem me dar conta e vieste buscar-me?"
- "Sim, mas... porque sorris!? Contentamento por estar morto?"
- "Não, estou simplesmente feliz por ainda ter alguém que sabe que existo e que comigo se importe."
domingo, março 04, 2012 | Etiquetas: Crónica (ou género disso) | 0 Comments
Escrito de Fresco porquê?
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