Um Cego em Espera (transcrição de 2011/02/09)

Entro na sala de espera e cheiro o suor, algum com meio dia, outro apurado há mais tempo. Os perfumes não disfarçam o odor, antes se misturam criando um cocktail agridoce que quase posso saborear no ar com a ponta da língua. Os cochichos e zuns-zuns ecoam-me nos tímpanos e é-me difícil filtrar as vozes que não me interessam, as conversas de chacha mantidas em toda a extensão da sala.

Em momentos como este queria poder desligar todos os sentidos. Tal como as pessoas ditas normais podem fechar os olhos, tapar os ouvidos e eclipsar-se por momentos de uma realidade incómoda. Mas um cego como eu não consegue fechar-se ao mundo. Cada poro do meu corpo é um receptor de alta precisão de tudo o que se passa ao redor.

As tosses não são um simples cof cof, são um respirar arranhado, contínuo, como um motor gripado em que não desistem de dar à chave. Os bébés mal trocados lembram-me os WCs públicos porque passo ao largo. As atracções físicas cruzadas dão lugar a palpitações e batidas dignas de um ritmo techno, aliadas à corrente de ar levantada por milhares de pelos que se eriçam em simultâneo.

Concentro-me para seguir a aragem, atravessando a sala para me situar junto à janela. O tik-tak da minha bengala apenas rivaliza com o clicar contínuo, em ruído de fundo, das teclas dos telemóveis onde alguns jogam, mandam SMS ou vão a uma qualquer rede social desabafar “Estou aqui a apanhar uma seca!”.

Encaro a janela apenas para sentir o vidro, opaco, uns graus mais frio que o resto da sala, e uns resquícios de brisa que passam pelas frestas da calafetagem. Toco-lhe para sentir as vibrações causadas pelo rebuliço no exterior. É apenas isto que me pode dar uma janela. De resto é como se fosse mais uma parede. Não sei o que é olhar lá para fora. Não sei o que é lá ao longe. Apenas domino o aqui ao perto. Mais do que aqueles que só o vêem, distraídos que estão com os assuntos do longe.

Como noutras vezes apetece-me escrever tudo isto que acabei de pensar e sentir mas não posso escrever sem montar uma parafernália de utensílios de punção. Sentir a pressão das palavras, que se entopem na coordenação de movimentos necessária ao perfurar do papel, faz-me entrar num processo de erosão. Pelo que me limito a usar a memória e bloggar o que me lembro quando chego a casa.

A enfermeira entra no gabinete do médico. Entre o flirt ouço-a mencionar o nome do próximo paciente. Atravesso novamente a sala e antes que abra a porta, e grite o meu nome feita Tarzan, posiciono-me para dizer ser eu.



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Olá... estou-te a ver! Podes falar mal ou falar bem mas com juizinho sff! Beijinho e/ou Abraço

Escrito de Fresco porquê?

Há quem me tome por incontinente verbal mas a verdade é que a minha língua não tem débito suficiente para o turbilhão de pensamentos que me assolam a mente a todo o momento. Alguns engraçados, outros desgraçados, mas vários merecedores desta lapidação digital para a posteridade e, quem sabe, para a eternidade. Os escritos aqui presentes surgiram do nada e significam aquilo que quiseres. Não os escrevi para mim mas sim para ti. Enjoy

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