A verdade de um bêbado (transcrição de 2010/12/30)
- Amigo! Encontrei-te! Anda, vamos beber uns copos.
- Amigo? Deves-me estar a confundir. Nós não nos conhecemos.
- Lá vens tu com essas merdas, todas as noites a mesma conversa. Cala-te e bebe.
- Cala-te e bebe!? ... ok ... e bebemos ao quê? Ao que comemoramos?
- Ao Universo extraordinário que é este bar! Um lugar onde se
fala de boca cheia sem pensar em julgamento social, onde se ouvem e
apreciam as cagadas de todos a mando dos copos.
- Motivo peculiar e interessante mas este bar também não é assim nada do outro mundo.
- Achas que não? Terás tu um mundo melhor que os demais? O meu
está repleto de conversas banais centradas no Universo comum. São as
histórias sobre os filhos, as viagens, a gastronomia e quando só homens
os inevitáveis carros ou futebol. Mas aqui não. Aqui só se fala de
assuntos refrescantes, sem rodeios, sem preocupação de ficar bem na
fotografia. Isto é vida!
- Bem, admito que conversas com bêbados, desculpa, com pessoas
mais alegres, acabam por ser menos convencionais e muitas vezes bem mais
interessantes e hilariantes.
- Aqui as conversas são geniais, digo-te eu. A língua mais
rápida que o pudor, que o política e socialmente correcto. A guarda da
auto-censura completamente de rastos conjugada com uma abertura de
espírito escancarada por parte dos ouvintes. Sem tabus, sem complexos,
sem julgamentos as palavras limitam-se a fluir.
- Não esperava ouvir algo tão eloquente de alguém evidentemente já com umas rodadas em cima.
- Estou um pouco bêbado mas longe de podre de o ser, ainda sei o
que digo. Refugio-me aqui para trazer ao de cima quem sou, sem as
amarras que me impõem no dia-a-dia. Já não me conheço quando sóbrio, não
gosto desse homem que me possui o corpo nessa altura. Um fantoche para
gáudio da mulher, família e amigos. Não incomodo nem acomodo. Não aqueço
nem arrefeço. Anulo-me numa previsibilidade monótona para dar segurança
e conforto a quem priva comigo.
- Se não gostas do teu círculo social renova-o. Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és. Não reza assim o ditado?
- Agora é tarde... Se romper com tudo o que me asfixia acabarei
sozinho. Terei de começar tudo de novo. Prefiro este escape, noites em
que para viver me entrego ao beber.
- Estranho. Afinal bebes para esquecer a vida que tens ou para te recordar da vida que queres?
- Bem, a verdade é que com essa me fodeste.
quarta-feira, janeiro 25, 2012 | Etiquetas: Crónica (ou género disso) | 0 Comments
O último serão no escritório (transcrição de 2010/02/17)
-Estou fartinho de estar aqui!
-Podes crer. Cada vez nos espremem mais. Noitadas atrás de noitadas! O meu marido já se anda a passar.
-É normal. Acho que nestes dois meses passei mais tempo contigo
do que com a minha família! A minha mulher também não anda propriamente
simpática.
-Nisso tens razão, de certo modo até tem sido saborosa esta fuga à rotina caseira! Hihihihihi
-Hehehehehe Sim, nesse aspecto é refrescante. É pena é estarmos aqui fechados no escritório.
-Aaaah mas tem sido divertido. Trocámos umas histórias
engraçadas, já para não falar das anedotas e vídeos estúpidos que vimos.
Lembras-te quando dançámos o mambo e derrubámos a Cola e as pizzas
sobre os arquivos? Hahahahaha
-Hahahaha Essa foi de morte! Espero que já tenha saído das fitas
da vídeo-vigilância! Seria vergonhoso aquilo ir parar ao Youtube...
Ui... a porradinha que eu levaria da minha mulher... Ia logo dizer que
eu estava aqui a divertir-me com outras!
-Sim, o meu marido também se iria mandar às paredes. Não sou nada dessas parvoíces de danças malucas.
-Agora que encarrilámos o projecto acho que nos próximos meses
já não vão haver mais serões. Vamos endireitar as nossas relações que
passaram por uns momentos de aperto devido às exigências profissionais.
-Pois é... que estranho... de certo modo até vou sentir saudades
destes momentos. Saía cansada mas bem –disposta. Tu és divertido e
alivias o stress.
-Vá, não te metas com isso. Só sou divertido porque tu também
és. Tive sorte. Se calhasse seres uma matrafona tinha de estar para
aqui caladinho que nem um rato sob risco de ser ameçado para me calar.
Tu és agradável ao olho e à fala. O chamado 2 em 1. Ou quatro se dermos o
devido valor às tuas mamocas!
-Parvo! Não posso vir com um decote mais atrevido metes-te logo com insinuações.
-hehehe Calma, estou-me só a meter contigo. Sei perfeitamente
que estas alianças nos nossos dedos dão faísca se nos aproximar-nos
menos de 2 metros!
-Pois, por isso é melhor mantermos a distância mínima de segurança!
-Ok. Vamos arrumar? Está na hora de apagarem as luzes.
-Sim, acabei.
Ambos arrumam os pertences e vestem os casacos. Caminham lado a
lado pelos corredores em direcção à saída quando, de repente, as luzes
se apagam. Instintivamente ela agarra-se a ele para sentir segurança e
ele agarra-se a ela sem saber porquê. Não dizem nada enquanto sentem o
corpo do outro contra o seu. Pouco depois os seus lábios tocam-se.
Primeiro ao de leve, timidamente, pressionando até provocar o abrir de
boca e o soltar das línguas sem pudor. Do fim do corredor apenas se vêem
e ouvem duas alianças a faiscar e tilintar de encontro uma à outra.
sábado, janeiro 21, 2012 | Etiquetas: Crónica (ou género disso) | 0 Comments
Projecto de FDS em Lisboa - Porto (transcrição de 2010-12-16)
Uma pancada seca fecha o porta-bagagens. Dois passageiros ocupam as
pontas do banco traseiro e acomodam-se à sua janela para o mundo nas
próximas horas. Para além do cinto prendem-se com um dar de mãos que
preenche o lugar vazio ao centro.
Lisboa – 0km – 0mnts
- Fim-de-semana maravilha, mas ela que não sonhe ser pedida em noivado!
- No passeio no Douro será perfeito! Irá ele oferecer-me um anel de noivado em ouro?
Vila Franca Xira – 20km – 10mnts
- Desta terra só me lembro de mancharem os coletes de encarnado sangrado dos touros! Cobardes miseráveis!
- Ele não me dirige a palavra!? Pensará nalguma vaca?! Se é isso
sangro-os aos dois, juro! Falo, falo mas sei que me acobardaria. Só a
ideia de tingir o meu colete de encarnado me repugna.
Santarém – 65km – 30mnts
- Deixaram ruir todos os marcos arquitectónicos e perder o estatuto
de capital do gótico. Tanta incúria e decadência. Pior até do que as
louças das Caldas.
- Não acredito! É decadente como de repente deixei de existir. Sinto os nossos alicerces a ruir.
Leiria – 129km – 1h
- Adoro passar aqui. Vá em sentido Sul-Norte, ou Norte-Sul, pouco
mais de uma hora e chegamos. A seguir é Pombal! A ver se é hoje que vejo
o raio de um pombo por ali!
- Mas como é ele capaz de ir ali com aquela cara de parvo e não me dirigir a palavra há mais de uma hora?
Pombal – 153km – 1h15m
- “Vais tão caladinho... Pensas em quê?”
- “Em nada de especial.”
- “Ninguém pensa em nada...”
- “Penso em tanto ao mesmo tempo que tudo somado dá um grande nada!”
- “Como...”
- “O bom que vai ser o nosso FDS!”
Dito isto sorri e beija-lhe a mão.
- Ver pombos já não foi hoje...
- Beija-mão!? Sou alguma velha!?
Coimbra – 189km – 1h30m
- Ui... grandes semanas académicas por aqui... velhos tempos!
- Vieram cá os U2 e ele nem fez um esforço para arranjar bilhetes...
Aveiro – 232km – 2h
- A ver se ela não se lembra dos ovos moles! Depois vai tudo para as ancas!
- Para consolo comia agora uns ovos moles! Mas vai tudo para as ancas...
Porto – 300km – 2h30m
- “Foi rápido! Que queres fazer agora?”
- “Quero voltar para Lisboa.”
- “Estás louca?”
- “Já não te conheço, acabou tudo.”
- “!? Disse algo errado?”
- “Não, mas também nada de certo.”
A marcha é invertida, o lugar ao centro vaza e ele joga a mão ao bolso onde repousa o anel de noivado em ouro.
quarta-feira, janeiro 18, 2012 | Etiquetas: Crónica (ou género disso) | 2 Comments
Um Cego em Espera (transcrição de 2011/02/09)
Entro na sala de espera e cheiro o suor, algum com meio dia, outro
apurado há mais tempo. Os perfumes não disfarçam o odor, antes se
misturam criando um cocktail agridoce que quase posso saborear no ar com
a ponta da língua. Os cochichos e zuns-zuns ecoam-me nos tímpanos e
é-me difícil filtrar as vozes que não me interessam, as conversas de
chacha mantidas em toda a extensão da sala.
Em momentos como este queria poder desligar todos os sentidos.
Tal como as pessoas ditas normais podem fechar os olhos, tapar os
ouvidos e eclipsar-se por momentos de uma realidade incómoda. Mas um
cego como eu não consegue fechar-se ao mundo. Cada poro do meu corpo é
um receptor de alta precisão de tudo o que se passa ao redor.
As tosses não são um simples cof cof, são um respirar
arranhado, contínuo, como um motor gripado em que não desistem de dar à
chave. Os bébés mal trocados lembram-me os WCs públicos porque passo ao
largo. As atracções físicas cruzadas dão lugar a palpitações e batidas
dignas de um ritmo techno, aliadas à corrente de ar levantada por
milhares de pelos que se eriçam em simultâneo.
Concentro-me para seguir a aragem, atravessando a sala para me
situar junto à janela. O tik-tak da minha bengala apenas rivaliza com o
clicar contínuo, em ruído de fundo, das teclas dos telemóveis onde
alguns jogam, mandam SMS ou vão a uma qualquer rede social desabafar
“Estou aqui a apanhar uma seca!”.
Encaro a janela apenas para sentir o vidro, opaco, uns graus
mais frio que o resto da sala, e uns resquícios de brisa que passam
pelas frestas da calafetagem. Toco-lhe para sentir as vibrações causadas
pelo rebuliço no exterior. É apenas isto que me pode dar uma janela. De
resto é como se fosse mais uma parede. Não sei o que é olhar lá para
fora. Não sei o que é lá ao longe. Apenas domino o aqui ao perto. Mais
do que aqueles que só o vêem, distraídos que estão com os assuntos do
longe.
Como noutras vezes apetece-me escrever tudo isto que acabei de
pensar e sentir mas não posso escrever sem montar uma parafernália de
utensílios de punção. Sentir a pressão das palavras, que se entopem na
coordenação de movimentos necessária ao perfurar do papel, faz-me entrar
num processo de erosão. Pelo que me limito a usar a memória e bloggar o
que me lembro quando chego a casa.
A enfermeira entra no gabinete do médico. Entre o flirt ouço-a
mencionar o nome do próximo paciente. Atravesso novamente a sala e antes
que abra a porta, e grite o meu nome feita Tarzan, posiciono-me para
dizer ser eu.
sábado, janeiro 14, 2012 | Etiquetas: Crónica (ou género disso) | 0 Comments
Escrito de Fresco porquê?
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