O Assassino de Razões

Era uma vez um Reino razoável onde se instalou uma grande injustiça sobre a qual todas as Razões se manifestavam.

A Razão Surda falava tão alto que nenhum outro som conseguia furar a barreira sonora gerada em seu redor. Julga-se indiscutível e indesmentível porque afinal ninguém é capaz de argumentar contra os seus pontos de vistas.

A Razão Coração proclamava poesia, cantava canções, ou exprimia por qualquer outra arte a sua opinião. Encanta tudo e todos com a sua veia criativa, artística e dramática mas poucos convence, estar certo disto ou estar certo daquilo dificilmente se resume à impulsividade do sentimento. Justiça ou injustiça aparentam ser para ela meras coincidências do destino pois raramente se obriga a pensar além daquilo que vê e sente no imediato.

A Razão Cega opinava sem ver.  Tudo o que diz parte do escuro e baseia-se nos discursos que lhe chegam aos ouvidos. É uma razão abstracta, teórica, que ouve todas as partes e constrói um modelo da situação. Só 'vê' aquilo que lhe relatam e constrói cenários apenas visíveis por si.

Por fim temos a Razão Muda. Tudo vê e tudo ouve mas nada diz. Pensa mas não fala. Para as outras Razões é a Razão neutra, a Razão tolerante, a Razão indiferente. Nunca está contra, nunca está a favor. Apenas observa sem interferir. É uma Razão low profile que não gosta de dar nas vistas. Mas o que elas não sabem é que dentro desta Razão tudo fervilha. Sobretudo por acreditar que mesmo que não fosse muda nenhuma das outras Razões iria verdadeiramente dar ouvidos ao que tem para dizer nem olhar para os seus pontos de vista. Teme que apenas iria contribuir para diluir a discussão em vez de a ajudar a concentrar-se objectivamente para que dela saísse uma decisão.

Por todas elas passam indifirentes os Sem Razão. Os Sem Razão são aqueles que não veem sentido na discussão. Agem por agir, vivem por viver. São seres amorfos que vivem de acordo com as regras e ditames saídos das discussões das Razões. No entanto a qualquer momento um Sem Razão pode ser cativado e ser absorvido por qualquer uma das Razões tornando-a mais forte, o que não quer necessariamente dizer que se tornasse mais certa. São sobretudo os Sem Razão que sofrem com a injustiça vigente apesar de serem aqueles que menos influência têm sobre os actos que a podem erradicar ou agravar.

Entre os Sem Razão esconde-se uma casta secreta. Os temíveis Razão Paga. Não têm preferência por qualquer uma das Razões mas, para seu proveito próprio, movem-se de Razão em Razão de forma indetetavel. Muitas vezes são usados como espiões ou terroristas de Razões, infiltrando-se para roubar ou minar argumentos de uma Razão a mando de outra. A estes pouco lhes interessa o estado do Reino pois o seu estado pessoal está completamente alheado daquilo que se passa no Reino.

A injustiça que assolava o Reino abordava um assunto fraturante e arrastava-se indefinidamente devido à pluradidade de Razões. A falta de entendimento prolongava a discussão consentindo o perpetuar da injustiça.

Tal era a gravidade da situação que farta deste impasse a Razão Muda, pela primeira vez desde a sua existência, decidiu agir radicalmente. Procurou e contratou o mais terrível dos Razão Paga, incumbindo-o da missão de Assassino de Razões. A sua tarefa era a de aniquilar uma ou mais das Razões existentes até ao ponto em que fosse possível um entendimento. Não interessava que Razões seriam extintas desde que fosse possível pôr fim à injustiça reinante que tanto prejuízo e infelicidade causava ao Reino.

Enfraquecer uma Razão? Isso era possível e trivial. Mas extinguir uma Razão? Não tinha memória de alguma vez isso ter sido tentado. Fazê-lo seria histórico pelo que apenas por vaidade e reputação não poderia deixar de aceitar. O Razão Paga sorriu com desdenho e assim que o pacto estava firmado a primeira coisa que fez foi aniquilar a Razão Muda. Afinal era uma das razões envolvidas na discussão, não foi feita qualquer ressalva de que deveria ser poupada, nem especificada a ordem pela qual deveriam ser desfeitas as Razões. Assim a Razão Muda desapareceu sem deixar rasto. Nenhuma das outras Razões deu pela sua falta e nada retirou ou acrescentou à discussão, pelo que o seu sacríficio foi inconsequente.

Após esta morte, fácil e rápida, o Assassino inicia o plano para atentar contra as outras Razões. A sua missão era clara. Matar Razões uma a uma até que fosse possível a tomada de decisão. No entanto, não muito tempo depois, ainda os seus planos estavam a meio, a Razão Muda estava refeita e voltou a contactá-lo para execução do mesmo serviço como se isso nunca tivesse acontecido.

O Assassino apercebeu-se nesse instante de que as Razões são imortais, podem apagar-se momentaneamente mas não extinguir-se para todo o sempre. Esta poderia ser uma tarefa sem fim! Mas a sua fama de implacável executante, entre os Razão Paga, não poderia ser maculada por este imprevisto. Havia apenas que mudar a abordagem inicial. Mais do que a morte de Razões a sua missão era a de conseguir gerar consenso.

Pela primeira vez na sua vida o Assassino observa atentamente a situação sujeita a discussão e ouve todos os argumentos de cada uma das Razões, excepto da Razão Muda que nada diz. Ao fazê-lo fica espantado em como partindo de um mesmo ponto as Razões chegam a opiniões e conclusões tão diferentes e em como todas fazem sentido parcialmente.

Após pensar arduamente sob a forma como iria conseguir aproximar as Razões, ao ponto de ser tomada uma decisão, decide-se por agir. Rapta cada uma das razões que dispõe num exíguo espaço circular e procede ao seguinte:

  • À Razão Surda são aplicados tampões de ouvidos que se activam apenas quando fala demasiado alto ou demasiado tempo. Sempre que isso acontece a Razão Surda pensa ter perdido a sua voz e deixa de falar, passando nesse momento a ouvir o que nunca ouviu e a ter momentos para pensar antes de continuar a falar.
  • A Razão Cega é forçada a envolver-se na situação relatada pelas outras. Deve ir tocar e sentir o cenário em discussão não se fiando plenamente no relato das outras Razões. Surpreendentemente encontra em cada cenário pormenores e detalhes, omitidos pelas outras Razões, e passa a interpretar melhor as situações em discussão mostrando às outras Razões aspectos que lhes tinham passado despercebidos.
  • A Razão Muda é forçada a escrever tudo o que pensa para que possa ser lido em voz alta às restantes Razões. Ganha um porta-voz, intérprete dos seus pensamentos e opiniões, que lhe permite pela primeira vez ter influência junto das restantes Razões.
  • A Razão do Coração, apesar de enclausurada e privada de meios materiais necessários para se perder em processos criativos, não foi capaz de ser vergada e mantém-se fechada no seu universo próprio saciando-se com as suas próprias criações e projecções mentais. A prazo e por vontade própria deixará de ser uma Razão ao reconhecer que o sonho não pode comandar a vida apesar de a sua presença ser obrigatória na vida.

Desta forma o Assassino de Razões consegue transformar a discussão da injustiça num verdadeiro diálogo retirando-a do anterior formato composto por um conjunto de monólogos que raramente se intersecionam.

Confinando todas as razões ao mesmo espaço de discussão, obriga os Sem Razão a ter de ouvir os argumentos de todas as Razões antes de se decidirem por aquela que é a sua. Inesperadamente surge aos poucos uma nova Razão, diferente de todas as outras, com um pouco de cada uma. É esta última Razão que serve de cola entre todas as Razões e finalmente consegue que se chegue ao entendimento final, repositor da justiça e do bem-estar no Reino.

O Assassino de Razões atingiu o seu objectivo não através da morte de Razões mas sim através da progressiva criação da nova Razão Ponderada. Não sendo ainda a maior é seguramente a mais certeira pois em assunto de Razões a Democracia corre o risco de ser uma enorme tirana ditadora.

O Assassino de Razões foi assim o Criador e primeiro adepto de uma nova Razão tornando ao mesmo tempo muito mais difícil a vida e ofício dos seus antigos colegas da Razão Paga.




Escrito de Fresco porquê?

Há quem me tome por incontinente verbal mas a verdade é que a minha língua não tem débito suficiente para o turbilhão de pensamentos que me assolam a mente a todo o momento. Alguns engraçados, outros desgraçados, mas vários merecedores desta lapidação digital para a posteridade e, quem sabe, para a eternidade. Os escritos aqui presentes surgiram do nada e significam aquilo que quiseres. Não os escrevi para mim mas sim para ti. Enjoy

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