A Respeito do Desrespeito

Risos ecoam pela câmara do altar que os amplifica de igual forma ao que faz com as palavras do Senhor.

- "Ha ha ha... he he he..."

Passos incomodados pelo riso num local sagrado, mesmo quando vazio, atravessam a igreja apressados. E chegando perto do folião deslocado dirige-se a ele num tom ríspido e crucificador

- "Shhhhh! Mais respeito! De que te ris tu dessa forma?"

- "Desta mensagens deixadas pelos nossos visitantes. Há com cada uma..."

- "Mas  tu lê-as?"

- "Claro, já que vão ser queimadas porque não dar-lhes a oportunidade de uma leitura?"

- "O facto de serem queimadas não é justificação para violares a privacidade das pessoas! As mensagens contêm os desejos que cada um gostaria de ver cumpridos, é entre eles e o divino!"

- "Privacidade? Não violo a privacidade de ninguém. São todas anónimas. A maioria não vale um chavo, os egoísmos e egocentrismos do costume. Mas há algumas dignas de ler. Além do mais o que é a privacidade? O esconder daqueles que conhecemos algo de pessoal, certo? Mas existe privacidade no anonimato? Não sei quem é o autor de cada escrito logo como posso estar a violar a privacidade de alguém não identificável?"

- "Devias respeitar os segredos de cada um. Anónimo ou não, não tens o direito de aí meter o bedelho."

- "Segredos? Mas se são segredos como podem ser desejos a ver cumpridos? A vida não se muda com segredos. Se são desejos para o futuro é melhor que os anunciem ao mundo e aos que os podem ajudar a concretizá-los. Se têm receio em assumi-los estão a perder tempo em escrevê-los nestas mezinhas."

- "As pessoas não são todas iguais. Há quem não goste de dar nas vistas. Estou certo que muitas não iam gostar de saber que lhe estás a ler os desabafos, os sonhos e pensamentos."

- "Eu diria que deixá-los escritos num espaço público mais não é do que a necessidade inconsciente de que alguém os leia e atenda as suas preces. Em teoria estes rolinhos de papel são invioláveis mas no seu íntimo os seus autores sabem que eventualmente eles serão manipulados para dar espaço aos vindouros.
Invariavelmente serão incinerados ou reciclados pelo que para mim é um acto de misericórdia lê-los antes de destruí-los. Nunca se sabe se lerei um em que possa ter influência ou que me influencie a mim.
Tu não tens a mínima curiosidade em saber que tipo de assuntos entregam as pessoas à intervenção divina?"

- "Sim, claro. A curiosidade desmesurada é um dos nossos grandes defeitos. Só que EU prezo o respeito acima de tudo."

- "Há alguma regra clara que diga que os rolinhos de papel não serão lidos?"

- "Bem, não existe propriamente um regulamento, mas assume-se que a sua entrega é a Deus e aos seus agentes."

- "E não somos todos agentes de Deus? Talvez seja esse o nosso papel. Ler as mensagens aqui deixadas e de alguma forma ao libertar as palavras despoletar uma série de acontecimentos que podem ajudar ou impedir que as preces se concretizem. Porque não experimentas abrir um? Talvez te surpreendas."

- "É verdade que Ele trabalha de forma misteriosa mas não acredito que seja a nossa missão analisar os escritos que nos deixam."

- "Vá lá não sejas um acólito ultra-conservador. Dá-me o benefício da dúvida e lê um e apenas um dos rolos. Toma pode ser este que tirei agora do molho. Era a minha próxima leitura antes da queima."

- "Não quero! Não percebes? Não quero!  E PÁRA COM ISSO!"

O silêncio assenta na igreja durante uns segundos. O prevaricador assume um ar embaraçado e envergonhado. Levanta-se do banco, junto à lareira, pousando o rolo que têm em mãos sobre ele. Sem dizer uma palavra passa a tarefa que tinha em mãos ao dono do dedo acusador e sai da sala.

O respeitador pega no rolo, senta-se no banco agora livre, olha para o molho de rolos ao seu redor e fita a lareira encarregue de os acolher. O crepitar tenta-o como o silvar de uma serpente. E dando o benefício da dúvida ao seu colega ausente começa a desenrolar o rolo que tem em mãos. Lê-o e fita-o inerte por uns momentos até ser interrompido pelo seu colega que retornara para lhe pedir perdão pelo seu comportamento.

- "Surpreendeste-me... nunca pensei que o fosses ler... mas porque estás com um ar tão transtornado?"

Sem responder levanta-se do banco, entrega-lhe a folha de papel, e diz-lhe simplesmente:

- "Continua o teu bom trabalho."

Após o que se afasta pensativo. O retornado reassume o seu posto e lê o papel que tem em mãos. Nele alguém suplicava simplesmente:

"Gostaria que alguém lesse estas preces antes de serem destruídas."



Escrito de Fresco porquê?

Há quem me tome por incontinente verbal mas a verdade é que a minha língua não tem débito suficiente para o turbilhão de pensamentos que me assolam a mente a todo o momento. Alguns engraçados, outros desgraçados, mas vários merecedores desta lapidação digital para a posteridade e, quem sabe, para a eternidade. Os escritos aqui presentes surgiram do nada e significam aquilo que quiseres. Não os escrevi para mim mas sim para ti. Enjoy

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