70 000 para 1

Mais de 70 000 formam a guarnição protectora contra a fúria dos elementos. Têm a estrutura e força alimentada por séculos de existência. Por mais que uma vez deram o corpo ao embate de ondas e ventos de mudança, resguardando a pacatez da vila que vive na sua orla.

As batalhas ao longo do tempo fizeram as suas vítimas, orgulhosamente quebradas pelo atingir do limite das suas forças. Por estes lados dar a vida por uma missão cumprida é uma questão de honra e compromisso.

Mas entre eles surgiu um jovem que não compreendia tamanha devoção e imobilismo. Porque têm de ser uma barreira intransponível e não um filtro que permita a chegada à vila de alguns sopros e salpicos? Qual o sentido de bloquear o que quer que fosse com a única certeza de que a vila permaneceria a mesma? Que ilusão é essa criada pelo intacto e pelo incólume?

Os anos passaram com pouco empenho desse jovem nas manobras defensivas, de resistência às tentativas de mudança impostas pela força do ar e água. Mas a sua inépcia na reacção foi sempre compensada pelos elementos à sua volta e retaguarda pelo que passou a ser apenas uma palha no agulheiro.

Até ao dia fatídico em que se vislumbra no horizonte algo nunca visto. Começa por avistar-se ao longe uma pequena onda a deslocar-se a 900 Km/h, desacelerando à medida que aproxima da costa, crescendo exponencialmente em altura. O embate está eminente. Todos assumem a sua posição de combate. Entrelaçam ramos e raízes, desde o subsolo até  às suas copas, criando uma malha que se manteve intransponível ao longo dos séculos. Quando a onda revolucionária atinge a sua altura máxima de 10 metros, suplanta em quase o dobro a altura dos mais jovens que olham para os anciãos com altura suficiente para olhar para a onda de cima. Estes sorriem-lhes com ar tranquilizador. Mais uma batalha para o registo pensam eles. E retesam seus troncos à sua máxima rigidez e densidade.

O jovem de que falamos à pouco, esse, contempla aquela enorme onda não participando no emaranhado de ramos e raízes. Já tinha desistido de o fazer há muito. Limita-se a torcer em segredo para que ao menos uma vez na vida algo consiga transpor aquela barreira invicta. Qual ingrediente secreto que cai acidentalmente numa fórmula estagnada.

E então dá-se o choque frontal. Ainda antes do contacto físico já a enorme força de sucção tinha levado consigo a terra que firmava a primeira linha. Os corpos dos primeiros tombados serviram de aríetes contra os segundos, que tombados são usados contras os terceiros, que tombados são usados contra os quartos, e assim sucessivamente. O ar crepitava com os milhares de CRAK-TRAK que denunciavam a destruição e desmantelamento da malha criada. Nunca se vira nada assim mas nenhum deles desistiu. Nem a a última linha que assistiu ao massacre de todos os seus companheiros. Limitaram-se a olhar para aquelas águas maciças que usava os próprios corpos das vítimas tombadas como uma paliçada que forma um pára-choque destruidor e imparável. As águas estavam a dar-lhes uma lição de Judo ao usarem a sua própria força contra si multiplicada pela velocidade de deslocação. Quando a última linha tombou as dezenas de milhar de corpos titânicos foram usados para arrasar a vila que durante séculos defenderam. Ironia do destino que os seus maiores defensores fossem agora usados como instrumentos agressores. A vila essa estava completamente indefesa. Há séculos que nada transpirava daquela barreira. Porventura já teriam até esquecido os perigos a que estavam sujeitos com frequência e como a eles reagir. Foram amolecidos pelo sucesso absoluto daqueles que falharam uma única vez na vida, e logo esta.

Quando tudo serenou e as águas abandonaram o que restava da vila existia apenas um observador atento. Alguém que sem lutar contra o inevitável foi moldado ao sabor da maré tendo a sua espinha dorsal suficientemente flexível para evitar mais um CRAK-TRAK. Incrédulo com a magnitude do que se tinha passado, e com a sua sobrevivência, perguntava-se se teria sido o elo mais fraco causador daquela catástrofe. Ou se o evitar de tantas pequenas mudanças ao longo dos séculos teria acumulado a força que  levou aquela transformação radical sendo a culpa de todos aqueles que sucumbiram e foram usados como armas de arremesso.

Terá tempo para pensar nisso no futuro. Por agora, pela primeira vez, sente que germinou no lugar indicado e que vai fazer a diferença numa vila que irá renascer dos escombros completamente mudada. Desta vez será ele o General do novo exército que será refeito em poucas décadas. Com as suas regras, as suas estratégias e a sua experiência não mais serão uma barreira intransponível mas antes um coador que deixará transpirar a fúria dos elementos em quantidade suficiente para fazer a mossa necessária para o fortalecimento contínuo daquela vila.

Mas por agora terá de, sozinho, proteger o que resta contra tudo e contra todos.



PS - Saiu-me isto depois de ver esta história na CNN sobre o pinheiro único sobrevivente do Tsunami de Março de 2011

A Lide da Consciência

O matador entra na arena, que se encontra ao rubro, e vê o alvo dos insultos e exaltação na ponta oposta.

Nunca se tinha visto nada assim. Uma tonelada da mais pura e possante fúria demoníaca. Os toureiros que iniciaram a Faena rodearam-no, estudaram-no, tentaram perceber detalhadamente a sua forma de investir enquanto ao mesmo tempo o procuravam cansar. Cada um deles foi colhido de forma diferente tal a imprevisibilidade deste animal feroz. Deveria estar desorientado, amedrontado, fácil de domar por quem tem o treino adequado. Mas este era diferente.

Este fez a longa viagem a partir da ganadaria sem que se notasse qualquer debilidade, enfrentou a estada nos curros, tão diferentes dos campos que dominava, calmo sem sinal de inquietação. Logo aí os tratadores nos bastidores começaram a avisar "Cuidado que este é diferente!"

Depois dos toureiros vieram os picadores, cavaleiros com suas lanças terminadas em puyas. Lâminas cuja função é dilacerar as terminações nervosas na base do seu pescoço para provocar a perda de força nas patas dianteiras e dificultar o erguer do pescoço. O objectivo seria torná-lo mais lento e forçá-lo a andar cabisbaixo. Chamam-lhe igualar a luta para que o homem fique ao seu nível. Sem esta nivelação, por baixo, facilmente destroçaria o mais forte dos homens. Valentes cavalos, montados por nobres homens, reduzidos a escombros em parcas cornadas. Nem uma vez foi rasgada a carne desta besta. Nem uma!

Neste ponto os organizadores do evento temiam pela possível perda de vidas. Qualquer um dos homens na arena sofria sérios perigos. Mas as bancadas pediam a continuação do espectáculo. Os bandarilhas entraram de seguida para o tentar cansar mas em apenas dois ou três sprints de fuga, à que seria a sua última cornada na vida, já não podiam com as pernas.

O público gritava com ódio de morte aquele bicho que fazia gato sapato dos seus ídolos. A pega foi cancelada. Os forcados não quiseram arriscar enfrentar uma besta que não tinha sido lidada, que não tinha sido picada uma única vez e que não tinha perdido litros do seu sangue que a levasse a cambalear e perder força como seria normal nesta altura da corrida. Esta besta estava no pico das suas capacidades e um forcado não é um kamikaze.

Sobrou apenas o grande Matador. Descendente de uma linhagem dos mais reputados matadores do mundo tauromáquico. Centenas de mortes à primeira estocada, algumas em condições de desvantagem que o tornaram uma lenda viva. Era a ele quem cabia encerrar este assunto.

"Lá está ela. Grande Besta Negra. Deste cabo de tudo o que estava planeado para hoje mas a mim não me escapas. Hoje vou finalmente atingir o recorde de mortes na arena ainda detido pelo meu pai!", pensava com total segurança. Ergue sua espada horizontalmente sobre a cabeça, estanca a sua capa vermelha, que fica perpendicular à espada, e assume a posição de Matador.

O público apercebe-se que finalmente verá o fim para este ultraje de um animal irado que se sobrepõe à valentia e astúcia dos homens e grita extasiado "OOOOOOOOLÉ... OOOOOOOOOLÉ...OOOOOOOOLÉ...OOOOOOOOLÉ" como se um assistisse a um jogo de futebol onde a sua equipa dominava a outra por completo com passes certeiros sucessivos.

O Matador chama-o. Os cornos viram-se para si, os olhos  focam-no, o corpo massivo alinha-se em posição de embalo e inicia o acumular do seu poder em resultado de um instinto de auto-defesa incutido por todas a tentativas de agressão anteriores. Quando atinge o seu climax de fúria explode num arranque de encontro ao Matador deixando para trás uma cratera com mais de meio metro de profundidade. A arena silencia-se e a vibração provocada pelo galope toma conta de todos. O Matador, firme e hirto, espera o momento em que tem de se esquivar e perfurar com a espada num só golpe, atravessando toda aquela musculatura maciça, de encontro ao coração daquele animal.

Falta pouco para o impacto mas a escassos 10 metros algo o faz travar a fundo, diminuindo a intesidade da corrida, depois caminhando até que lentamente pára a apenas 2 metros do Matador que parece uma estátua.

"Que raio!? Já lhe tinha a rota traçada. Ia ser uma morte limpa. Mas porque me terá poupado a investida se despachou todos os outros sem fazer distinção? Temerá a minha espada? Saberá o que o espera?"

A Besta fita-o e de repente deita-se e rebola-se ficando de peito exposto. O Matador está desorientado com tal comportamento e as bancadas incitam-no a aproveitar aquela vulnerabilidade e fazer o seu trabalho. Perderam uma lide mas não perderão uma morte! "OOOOOOOOLÉ... OOOOOOOOOLÉ...OOOOOOOOLÉ...OOOOOOOOLÉ"

Ali tão de perto repara que na testa do Bicho está uma cicatriz. Com três letras invertidas.

"Mas!? São as iniciais do meu pai!?" e num flash volta aos seus tempos de infância onde às escondidas de todos brincava no picadeiro com um jovem novilho, filho de uma das vacas bravas do seu pai. Era o seu melhor amigo. Tinha instrucções para treinar as lides com esse novilho mas o raio do bicho lambia-o da cabeça aos pés e em vez de investir entrava em guerra de wrestling e jogo do empurra tirando prazer daquele contacto físico inocente. Inclusive chegava a cavalgá-lo como se de um potro se tratasse. Até ao dia em que o pai os apanhou em flagrante e lhe gritou "Mas o que estás a fazer!? Estás-me a estragar o novilho?" antes de os separar violentamente e após um valente estalo lhe lembrar "TU ÉS UM MATADOR!". Lembra-se da forma como o novilho se fez Touro e de rompante deu uma valente marrada no estômago do seu pai que ficou combalido durante uns bons segundos. O Toirinho esse ficou com a fivela do cinto do seu pai cravada na sua testa. Todos os cintos do seu pai tinham as suas iniciais. Depois desse incidente o Toirinho foi levado para outra ganadaria e não mais foi autorizado a lidar com vitelos sozinho.

E agora aqui estava aquele vitelo já Touro. A agir como se ele, o agora Matador, ainda fosse aquele menino inocente. Como se não tivesse sido já formado como o próximo grande Matador na linhagem da sua família que seguia os lemas de que Amar um Touro, Respeitar um Touro é proporcionar-lhe uma boa lide e uma morte digna durante uma luta de igual para igual.

O público esse não tinha participado no seu Flashback e continuava com os seus "OOOOOOOOLÉ... OOOOOOOOOLÉ...OOOOOOOOLÉ...OOOOOOOOLÉ".

O Matador olha para a sua espada, ainda erguida, e vê na sua lâmina reflectidos o seu pai e filho que se encontram na bancada. O seu filho tem exactamente a idade que ele tinha quando foi sujeito aquela lição de vida. Está na altura de iniciar o treino para ser o próximo grande Matador. O seu pai, Matador já retirado ainda com o recorde de mortes na arena, faz-lhe sinal com o seu polegar apontando para o chão e acena-lhe com a cabeça para terminar o espectáculo executando aquele que é o seu papel. Não há orgulho maior para um pai do que ver um filho atingir-lhe as pegadas. É a primeira base de partida para as ultrapassar.

O público continuava com os seus "OOOOOOOOLÉ... OOOOOOOOOLÉ...OOOOOOOOLÉ...OOOOOOOOLÉ".

Apesar de não ter acontecido o Matador sentia ter sido esta a maior marrada da sua carreira, só secundada pela melhor marrada da sua vida dada por este mesmo Touro ainda jovem, ao seu pai, quando não era ainda Matador e não se podia defender e às suas ideias por si próprio. O Matador aproxima-se do Touro ali deitado a seus pés, deixa cair a sua espada, abraça-lhe o cachaço, e sussurra-lhe:

- "Olá Touro!"

E ambos choram pelo seu reencontro. O Touro feliz por saber que os homens não são todos iguais e o Matador destroçado por ter morto tantos touros iguais.

Nas bancadas espanto e silêncio. Como é possível as duas criaturas na arena não agirem de acordo com a sua Natureza!? Alguns começam a questionar-se se seria realmente essa a sua Natureza. O pai do Matador por sua vez apercebe-se que o recorde ficará para sempre consigo e encaixa um soco no estômago que o deixará combalido para o resto da vida. Olha para o seu neto, sentado ao seu lado, e vê-o com uma expressão radiante. O neto estava em pulgas por correr para casa e contar o que tinha acontecido ao novilho seu amigo de brincadeiras secretas.


Escrito de Fresco porquê?

Há quem me tome por incontinente verbal mas a verdade é que a minha língua não tem débito suficiente para o turbilhão de pensamentos que me assolam a mente a todo o momento. Alguns engraçados, outros desgraçados, mas vários merecedores desta lapidação digital para a posteridade e, quem sabe, para a eternidade. Os escritos aqui presentes surgiram do nada e significam aquilo que quiseres. Não os escrevi para mim mas sim para ti. Enjoy

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