Entre a porta e o telefone

- Olha amiga, estou aqui enfiada em casa sem pachorra para nada nem ninguém. Só me surgem labregos e já dou patadas automáticas em cada homem que me aborda!

- São todos uns pulhas! Depois da cueca mudam logo do avesso. Não interessa se a têm no primeiro dia, passados uns meses ou só depois do casamento. Depois da estreia passam logo a pensar na reciclagem.

- Podes crer, já não há príncipes encantados...

DING-DONG .... DING-DONG

- Olha tenho de ir. Tocaram à porta, já falamos.

- Ok, até já.

Abre a porta de rompante e depara-se com um homem que lhe diz sorrindo:

- Olá, cheguei!

- Chegaste!? Mas quem és tu!? (pensando "Este deve ser parvo...")

- Sou eu, o teu noivo! Sei que nunca nos vimos mas é comigo que vais casar! Decidi conhecer-te antes do dia marcado.

- Uoooooooh! (misto de espanto e repulsa) Calma lá! Nunca nos vimos, nem nunca nos vamos ver mais,  garanto-te. Mas que merda é esta!?

- Mas sou eu o teu noivo prometido! Peguei na morada da carta dos teus pais e decidi fazer-te uma surpresa. Afinal ninguém gosta de se casar com quem nunca viu na vida, não é?

- Pais!? Falar de pais a uma orfã é precisamente o tipo de coisas que te podem fazer arrepender... mostra lá a porcaria da carta.

A carta troca de mãos que se tocam sem retração do gesto.

- Pois, até acertaste na cidade, estás é no país errado! Isto são os USA, a Lisboa que tu querias fica em Portugal!

O homem fecha o sorriso e fica algo apreensivo durante uns momentos. Ela passa a sorrir tímida e debochadamente. De repente o homem recupera o sorriso inicial. Ela volta a uma cara franzida.

- Pois se assim aconteceu que assim seja. Vou casar contigo!

- Estás parvo!? Nem me conheces de lado nenhum e estás no Continente errado! Achas que faz algum sentido isto que estás para aí a dizer?

- Já te conheço há uns minutos, o que é bem mais do que aquilo que conheço a minha noiva arranjada, e já sinto que gosto de ti. Tu também deves gostar de mim senão já me tinhas fechado a porta na cara. O Cristóvão Colombo também pensava ter chegado à Índia quando chegou à América. Ele não voltou para a Índia pois não? Sinto-me bem aqui ao pé de ti e se partir sei que vou ter saudades, ser triste e miserável. Por isso decido ficar e arriscar ser feliz contigo. Que me dizes?

- Que te digo!? Que te digo!? Digo-te que te ponhas a milhas e me deixes em paz!!!

SLAM  e a porta bate violentamente escondendo um homem destroçado. Encostada à porta reprocessa a situação e sorri. Com o coração a mil mira o olho-de-boi e não vê ninguém. Perde o sorriso e 920 batidas por segundo. Encaminha-se para o telefone, digita o número da amiga com quem falava antes do incidente para reatar a conversa cortada.

- Então quem era?

- Era um louco a dizer que queria casar comigo, acreditas nisto?

- A sério? Uau! Era giro? Como era?

- Bem, na verdade não era nada de se deitar fora, bem falante, respeitador...

- Hum... Hum... estou a ver ... e tu que fizeste?

Com um semblante carregado e um aperto no estômago responde-lhe:

- Olha, acho que fiz merda...


Um Natal Valentim

É época natalícia, logo a seguir vem o reveillon, segundo as estatísticas são as alturas do ano onde ocorrem mais desavindos, separações, divórcios e mesmo suícidios. Para mim não há perigo, vou passar essas datas sozinho porque passou o período de 9 meses sem que nada desse à luz.

Lembro-me desse dia, de te querer supreender convidando-te para um jantar imprevisto, tanto para ti como para mim, o que resultou na falta de uma reserva de mesa. Andámos de restaurante em restaurante, as filas repletas de bouquets, caixas de bombons e casais emitindo crru-crrus ternurentos enquanto roçavam os corpos. Nós, não dispostos a esperar, seguíamos pela estrada rolando e rindo. Acabámos num Drive-in a pedir uma junk-food qualquer. Meu Deus que pecado aquelas sobremesas cremosas com toppings do Diabo.

Seguimos para um spot no meio do nada com vista para o mar. Agarraste-me a mão que estava sobre o manípulo das mudanças com medo de que eu não respeitasse o fim de caminho e nos jogasse pela ravina. Não percebi se foi um sentimento de insegurança ou a tua forma discreta de criar a primeira faísca. Aquele pequeno toque foi a ignição de um desejo escondido que me esforcei por voltar a aprisionar nos confins do meu subconsciente.

Ficámos ali parados olhando as estrelas e o manto de luz lunar sobre o espelhado do mar. A música hipnótica e as nossas falas dengosas empurraram-nos para o banco de trás e embaciaram todos os vidros. Já não estávamos no mundo mas sim num casulo só nosso, entrelaçados, sofrendo uma metamorfose para estados de alma indescritíveis.

Seria por causa da magia agendada anualmente para aquele dia ou pura coincidência? Na verdade éramos apenas bons amigos e de repente isso era pouco para descrever a nossa relação. Não sei se fomos alvos de um pequeno anjo que semeou em nós a semente da paixão mas o que é facto é que não se explica facilmente o fogo que ali ardeu.

O dia seguinte era meados e não muito tempo depois chegámos ao fim. E é por isso que agora é Natal, daqui a pouco é Ano Novo, e eu sonho aqui sozinho, esperando ansiosamente pelo dia catorze em que voltarei a convidar-te para um jantar surpresa. Desta vez precavi-me e já reservei mesa. Só te peço que esperes por mim porque prometo que seda para nos envolver em novo casulo não nos faltará.




Problema de Visão

- Que vê? Está a fazer uma cara tão estranha!?
- Vejo como nunca vi antes! Sinto-me um falcão! Nunca vi tão nítido e com tanta profundidade, na verdadeira plenitude da tridimensionalidade. Ao avançar ou recuar sinto a paisagem a movimentar-se, centímetro a centímetro, como se cada camada do horizonte estivesse assente em painéis deslizantes. Impressionante como o mundo parece estar vivo agora que estou ciente de todas as sobreposições e dimensões dos edifícios, das montanhas, das árvores, até das nuvens! Meu Deus, olhar a paisagem desta forma é como o descascar de uma cebola em que cada camada emana esplendor e não ardor.
- Mas e antes? Como via?
- Antes? Antes apenas via borrões coloridos. Vivia ofuscado por um mundo esférico, desfocado, disforme, onde apenas variava a dimensão e intensidade de cada elemento. Apenas conseguia definir-me a mim, fosse por olhar o meu corpo, fosse por reflexo num espelho.
- Pelo que descreve parecia ter uma cegueira iluminada. Via mas nada de entendível. Sempre foi assim?
- Não. Mais tarde comecei a ver com clareza aquilo que estava à distância de dois metros. Tudo o resto parecia um mero papel de parede que decorava o fundo do meu mundo.
- E neste momento apercebe-se de tudo?
- Sim, agora vejo com clareza toda a panorâmica e sem exagero até ao ponto em que se denota a curvatura da terra lá longe, lá muito longe.
- A curvatura da terra!?
- Sim, juro que consigo distinguir o horizonte a passar de um plano rectilíneo para um plano curvo. É uma visão impressionante. O meu cérebro fervilha com toda a informação enviada pelos meus olhos!
- Hum... nesse caso é melhor experimentar estas lentes com a graduação ligeiramente diferente. Porque ver assim tão bem é anormal e o que pretendemos é que tenha uma visão normal.

Escrito de Fresco porquê?

Há quem me tome por incontinente verbal mas a verdade é que a minha língua não tem débito suficiente para o turbilhão de pensamentos que me assolam a mente a todo o momento. Alguns engraçados, outros desgraçados, mas vários merecedores desta lapidação digital para a posteridade e, quem sabe, para a eternidade. Os escritos aqui presentes surgiram do nada e significam aquilo que quiseres. Não os escrevi para mim mas sim para ti. Enjoy

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